Por que eu fotografo em preto e branco. – Por Francisco Cribari.

Eu faço primordialmente fotografia de rua e documental.
Ocupo-me, assim, da vida como ela é, da vida como se desenrola cotidianamente, sem disfarces ou vernizes.

Esse é o tema que me encanta e que me move: o ser humano, seu comportamento e suas interações.

Encanta-me o que é verdadeiro, o que tem lastro na complexa e nuançada humanidade que nos habita e que nos define.

Passada a camada de vernizes, de projeções pessoais e sociais, dos disfarces, dos habituais mecanismos de defesa e de nossa incessante busca por conformidade há nossa humanidade. Rica, contraditória, cravejada de nuances.

É preciso, assim, atravessar uma camada de distrações para alcançar o essencial, o fundamental.

De forma análoga, a fotografia contém algo essencial: conteúdo, composição e uso da luz disponível.

Essa trindade é, para mim, a essência fotográfica, é o que costuma chamar “tutano fotográfico”. É ela que me toca, que conversa comigo sem intérpretes ou inócuas adjetivações.

Para alcançá-la, opto por abrir mão das camadas que nos separam. Em especial, abro mão daquilo que chamo de “verniz fotográfico”, daquilo que constitui a camada mais imediata da imagem, daquilo que tem o poder de nos seduzir e dominar nossa atenção: as cores. Como sabemos, nosso cérebro se ocupa primeiramente do processamento de cores para só então processar formas.

Nossa atenção imediata privilegia certas cores.

Ela, mesmo que por instantes infinitesimais, mergulha em encantamentos proporcionados por matizes e saturações.

Distanciamo-nos, assim, daquilo que releva, daquilo que para mim constitui o essencial, do diálogo sincero e direto travado pelo conteúdo, pela composição e pela luz.

É esse o diálogo que me toca e que me move. Ele é meu destino e meu refúgio.

Pouco interesse mantenho em prefácios, prelúdios, vernizes e encantamentos.

Essa é a razão primordial por que o preto e branco domina minha fotografia.

Há, em caráter acessório, duas outras razões.

A primeira envolve o uso da imaginação. Nada somos sem nossa capacidade de imaginar, de abstrair, de criar a partir de abstrações, de estabelecer associações, de unir o real ao imaginário.

A fotografia em cores possui caráter literal na medida em que fornece uma descrição completa da cena.

Pouco alimento deixa para nossa imaginação, para nossas reconstruções subjetivas, para o deleite de nossa imaginação.

Em contraste, na fotografia monocromática nossa imaginação é convidada a revisitar a cena, a reconstruir as informações faltantes, a criar um diálogo entre o real e o imaginário.

Como alguém já colocou – e com propriedade -, apreciar uma fotografia colorida é como assistir a um filme ao passo que a apreciação de uma fotografia em preto e branco mantém relação com a leitura de um livro.

Ao me deparar com essa analogia lembrei imediatamente do enorme e indescritível prazer que senti ao ler Anna Karenina, obra fundamental do escritor russo Liev Tolstói.

Lembrei da forma como imaginei os traços físicos do conde Alexei Vronsky, de como imaginei os gestos de inquietude da protagonista da história, de como perambulei pelas indecisões da princesa Kitty e pelos conflitos existenciais de seu pretendente, Konstantin Levin.

Que banquete para qualquer imaginação inquieta e fértil! Logo em seguida lembrei das versões do livro para a grande tela. Ali tudo me foi dado, tudo me foi entregue, tudo foi descrito, pouco foi deixado para minha imaginação.

Só o livro me marcou, só nele realmente dialoguei com a história enquanto a degustava.

A segunda razão acessória pela qual o caráter monocromático domina minha fotografia reside na ânsia que mantenho em criar algo que seja separado da realidade, mesmo que parcialmente, em gerar algo que contenha entidade própria.

Concordo, assim, com o fotógrafo norte-americano Aaron Siskind, que certa vez afirmou que ao produzir uma fotografia deseja que ela seja um objeto novo, completo e auto contido.

A remoção da referência às cores, como notado pelo fotógrafo David Edelstein, contribui para que as fotografias se tornem objetos novos, fazendo-as ir além da mera descrição do mundo.

Em resumo, o preto e branco, em sua abstração, seduz nossa imaginação e não nossa atenção imediata.

Oferta território fértil para o exercício de nossa imaginação, abre uma porta para um mundo novo, para um mundo em que realidade e irrealidade coexistem harmonicamente.

O preto e banco nos conduz diretamente ao tutano fotográfico, aos elementos essenciais de uma fotografia.

Distancia-se do mundo que retrata em alguma medida, buscando constituir objeto novo, uma entidade não escravizada pela realidade que lhe deu origem.

Texto de autoria de Francisco Cribari.

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